Espaço para interação de cidadãos e cidadãs interessados no debate de políticas públicas para a cultura no município de Santa Cruz do Sul

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cultura, desenvolvimento e crescimento econômico

Cultura como vetor do desenvolvimento local

Parte 1: Definindo os termos
Para uma discussão séria sobre as relações entre cultura e desenvolvimento devemos começar perguntando o que entendemos por cada um destes conceitos.
Desenvolvimento é um conceito muito discutido e enfocado sob múltiplas perspectivas, muitas delas contraditórias. Para a discussão que nos interessa fazer, uma primeira providência passa por distinguir entre desenvolvimento e crescimento econômico, observando as diferentes faces do desenvolvimento – desenvolvimento econômico, desenvolvimento social, desenvolvimento científico e tecnológico – e perguntando onde se localizam e que papel desempenham os aspectos culturais, educacionais e humanos do desenvolvimento. Este movimento analítico pode nos conduzir, por exemplo, ao conjunto de indicadores que compõem o IDH (índice de desenvolvimento humano adotado pela ONU e seus diversos organismos).
No estudo do desenvolvimento podemos aprender muito com Celso Furtado, um dos maiores intelectuais brasileiros, economista que foi ministro do planejamento e ministro da cultura. Segundo Celso Furtado o verdadeiro desenvolvimento só ocorre quando beneficia o conjunto da sociedade. Ou seja, desenvolvimento não é só crescimento econômico. Crescimento econômico eleva a renda per capita mas não diminui as desigualdades sociais nem elimina a pobreza e a miséria. Superar o subdesenvolvimento requer criatividade política impulsionada pela vontade coletiva. Por isso, diz Furtado, impõe-se formular uma política de desenvolvimento que “abra espaço à realização das potencialidades de nossa cultura” (Em busca de novo modelo. Ed. Paz e Terra, 2002).
Cultura, igualmente, é um conceito difícil de definir com precisão. Entre as mais de trezentas definições que aparecem nos livros de antropologia, uma das mais aceitas entre os antropólogos é a de modo de vida, segundo a qual a cultura corresponde ao modo de vida de um povo ou nação, constituindo e expressando o seu modo de sentir, pensar e agir. Esta noção de cultura aplica-se a todas as práticas, materiais e simbólicas, de um grupo ou sociedade, abrangendo os modos de fazer, as práticas corporais, as crenças, os saberes, os gostos, os hábitos, os estilos, a concepção de mundo, os conceitos de natureza, de sociedade, de humanidade, de sagrado, de proibido, de obrigatório e englobando todas as demais instâncias do sistema social: as relações econômicas, políticas e familiares, as religiões, as artes, as profissões.
Esta compreensão de cultura afirma a impossibilidade de analisar separadamente as dimensões simbólicas e materiais da sociedade, já que os processos de expressão simbólica (representação ou reelaboração) remetem a estruturas mentais, a operações de reprodução ou transformação social, a práticas e instituições que por mais que se ocupem da cultura, implicam uma certa materialidade (por exemplo, escolas, meios de comunicação, igrejas, museus, academias e centros culturais), ou seja, não existe produção de sentido que não esteja inserida em estruturas materiais assim como as práticas sócio-econômicas habituais estão carregadas de sentido simbólico.
Em função disso, na discussão sobre as relações entre cultura e desenvolvimento vamos considerar a cultura em suas três dimensões, enquanto produção simbólica (foco na valorização da diversidade, das expressões e dos valores culturais), enquanto direito e cidadania (foco nas ações de inclusão social por meio da Cultura) e enquanto economia (foco na geração de empregos e renda, fortalecimento de cadeias produtivas e regulação).
E com isso chegamos a uma compreensão de cultura como um processo social de produção. Ou seja: a cultura constitui um âmbito específico do sistema social e não pode ser compreendida isoladamente porque tanto está condicionada pelo social, como está inserida em todo fato sócio-econômico, toda e qualquer prática é simultaneamente material e simbólica.
Com base nestas definições de desenvolvimento e cultura pretendo apresentar na segunda parte deste artigo uma reflexão sobre a necessidade da institucionalização das ações culturais com base em políticas públicas que garantam a participação da população e sobre a responsabilidade da comunidade e do poder público com a criação e manutenção de equipamentos culturais e a disponibilização de conterúdos culturais condizentes com a formação, via educação, de um público que valorize a diversidade das manifestações culturais.
Por ora adianto que os tópicos que deveriam ser contemplados na elaboração destas políticas e ações culturais envolvem:
- criar condições para que todos e cada um, particularmente articulados em grupos e coletivos, possam exprimir-se e exercitar sua cidadania cultural;
- criar equipamentos coletivos para a produção, manifestação e fruição da diversidade cultural da cidade;
- elaborar uma programação cultural que atenda à diversidade de demandas culturais de diferentes grupos e setores da população;
- investir em um projeto educacional de formação de produtores culturais.
- investir na formação de um público capaz de desfrutar e aproveitar de conteúdos culturais os mais variados, desde projeções de filmes e exibições de teatro e música até palestras científicas e filosóficas, mostras de artesanato, oficinas artísticas variadas, espetáculos folclóricos, cursos de culinária regional e exposições de grandes mestres da escultura, da fotografia e das artes plásticas.

Parte 2: Políticas públicas e ação cultural
A produção da cultura surge das necessidades globais de um sistema social e está condicionada por ele. Falar da cultura como produção supõe levar em consideração os processos produtivos materiais que são necessários para a invenção, o conhecimento ou a representação de alguma coisa. Por isso, tanto as análises quanto as políticas culturais precisam considerar todos os passos de um sistema de produção: a produção propriamente dita (elaborar, fazer o produto), a distribuição (espalhar o produto pela área a ele relacionada), a troca (colocar o produto em contato com seu usuário real) e o consumo (a utilização efetiva do produto pelo usuário final). Falar da cultura como produção supõe compreender que existe uma organização material própria para cada produção cultural e que torna possível a sua existência: a universidade para a produção e transmissão do conhecimento, as editoras para a produção de livros, as bibliotecas para a sua circulação, etc.
Isto coloca em evidência a importância da criação e organização de instituições e da institucionalização da ação cultural. Uma instituição – um Centro de Cultura, um Núcleo de Teatro e Dança, uma Oficina de Artes – é mais permanente, tem mais materialidade, é mais difícil de desmantelar do que um projeto informal ou uma ação espontânea desenvolvida em caráter eventual, por voluntariado e/ou em locais improvisados. Concordo que o que conta mesmo são as pessoas, em si e no coletivo que as envolve. São as pessoas que fazem as coisas, instituições são instrumentos para a ação. E se uma instituição é um instrumento, como tal deve ser reconhecida e utilizada. Secretarias, Divisões, Departamentos, Museus, Núcleos, Centros ou Casas de Cultura, devem ser concebidas como instrumentos necessários, que dão materialidade e permanência a ações muitas muitas vezes puntuais, eventuais, intangíveis e imateriais.
Estamos agora falando de ação cultural, de cultura como política pública, de instrumentos e aparatos estatais para a ação cultural. Cabe destacar, ao lado da institucionalização das ações e da construção de equipamentos culturais, a importância do conteúdo cultural disponibilizado nestes equipamentos e da construção de mecanismos democráticos para a participação da comunidade nas decisões, sejam sobre a programação cultural, sejam sobre os mecanismos de incentivo à produção cultural local, sejam sobre as formas de inclusão da dimensão cultural nos projetos de desenvolvimento.
Ao mesmo tempo é necessário lembrar que esta é uma reflexão sobre a ação cultural na sociedade de massas (ou sociedade de consumo de massas). Nesse tipo de sociedade há uma confusão entre cultura e lazer, com a criação de uma indústria cultural como indústria do lazer, que oferece lazer sob embalagem de cultura. Na verdade, a sociedade de massas não quer cultura, mas lazer (a diversão, o entertainment) cujos artigos são consumidos do mesmo modo como esta sociedade consome qualquer outra coisa. É importante denunciar este processo: cultura não é lazer, cultura não é turismo, cultura não é entretenimento, um centro cultural não é um grêmio recreativo.
Por isso é preciso perceber que por mais importante que seja, o equipamento cultural (a Casa de Cultura, o Museu, o Centro de Artes) em si não basta. É preciso que a cultura esteja incorporada na educação e que a educação se faça com cultura e arte para a formação de um público sedento por possibilidades de criar e de fruir cultura, um público capaz de perceber os elementos éticos e estéticos seja de uma dança popular da região, seja de uma sinfonia do século 19 ou de um espetáculo teatral contemporâneo.
Nestes últimos parágrafos quero conduzir a reflexão para a ação cultural a nível local/regional, seja de parte do Estado nos diferentes níveis de governo, seja de parte da comunidade através de suas entidades, instituições e grupos e associações, seja do setor empresarial privado. Seja qual for o seu agente, a ação cultural deve contribuir para um maior acesso por parte de um número maior de pessoas às linguagens da expressão cultural, oferecendo o máximo de meios para que as pessoas possam inventar seus próprios fins. Isso aponta para a necessidade de pensar políticas culturais no nível local (claro que articulando-as com as políticas públicas para a cultura em nível estadual e nacional).
Finalmente, destaco a importância das associações de cidadãos para o desenvolvimento cultural através da criação, operação e apoio a equipamentos culturais - museus, bibliotecas, cineclubes/cinematecas, etc – e a manifestações culturais, sejam elas artísticas, filosóficas, científicas ou do modo de vida cotidiano. Sem esquecer, no entanto, que as entidades da comunidade e as instituições da sociedade civil são fundamentais na ação cultural, mas não podem substituir o Estado. E não podem principalmente abrir mão de financiamento estatal. E o Estado não pode abrir mão do trabalho conjunto com a comunidade, mas também não pode abster-se de seu papel de fornecer às pessoas o máximo de meios para a invenção de seus próprios fins.
E se tivermos um setor de produção cultural forte teremos gente trabalhando neste setor, vivendo disso, pagando impostos, consumindo, contratando mais gente. Portanto, o investimento no setor cultural, com disponibilização de fundos e injeção de recursos, pode dar um retorno econômico e social bastante considerável, além dos resultados na preservação, disseminação e ampliação do patrimônio cultural material e imaterial, tangível e intangível da região.
No próximo texto pretendo apresentar as linhas gerais de dois ambiciosos projetos de diversificação econômica com base no fortalecimento do setor cultural.

Parte 3: Propostas de diversificação econômica
Concluí a parte 2 deste artigo dizendo que o investimento no setor cultural, com disponibilização de fundos e injeção de recursos, pode dar um retorno econômico e social bastante considerável, além dos resultados na preservação, disseminação e ampliação do patrimônio cultural material e imaterial, tangível e intangível da região. Nesta terceira e última parte do texto passo a apresentar algumas sugestões para o desenvolvimento econômico através do investimento cultural. Tratam-se de idéias ainda apenas esboçadas e à espera de quem possa desenvolvê-las melhor. Numa delas apresento as linha gerais um grande projeto de diversificação e expansão econômica com vistas a tornar Santa Cruz do Sul um pólo macro-regional de cultura e que exige uma gigantesca operação de logística e engenharia financeira que dará retorno em médio prazo (10 a 15 anos), embora seus efeitos econômicos em termos de geração de empregos possam ser bem mais rápidos. A outra é a criaçãode um evento cultural anual de grande porte que pode ser viabilizado já para 2010 e que poderá dar retorno cultural, financeiro e de imagem para a cidade a partir de sua segunda ou terceira edição.
O projeto do Centro Cultural Internacional de Santa Cruz do Sul propõe a construção de um centro cultural com museu, salas de exposições, teatro, auditórios, salas de projeção, cafeterias, restaurante-bar, salas de aula, salão de conferências, loja de objetos e lembranças do museu. Tanto o museu como as salas de exposição deverão ser adequadas aos padrões de qualidade e segurança para receber acervos e mostras do circuito internacional de arte e cultura, e o salão de conferências deve ter flexibilidade para receber desde grandes convenções até palestras e conferencias de médio e pequeno porte. Para isso deve-se pensar e um sistema de paredes móveis que permitirão configurá-lo como uma grande sala capaz de abrigar um público de 2.000 a 2.500 pessoas, ou como 5 salas para 400 pessoas, além das configurações intermediárias. Na mesma linha, o teatro deve ter dois palcos com dimensões, recursos e equipamentos capazes de receber as principais montagens do país. Todas as salas de projeção terão projeção digital, uma delas terá com projetor de 16 mm e grande sala de cinema terá também condições de projetar filmes em 35 mm.
A realização de um projeto desse porte e complexidade exigirá uma enorme operação de engenharia financeira, articulação política e organização administrativa. Certamente será necessário o envolvimento do poder público e de todas as forças econômicas, sociais e políticas do município, pois que trata-se de um projeto extremamente ambicioso de transformação do perfil de desenvolvimento da cidade transformando-o em uma referência cultural para todo o sul do país num período não maior do que 15 anos. Evidentemente, o retorno financeiro já pode começar muito antes disso com a geração de empregos na construção civil e continuará com o desenvolvimento de toda a cadeia produtiva da cultura e do turismo.
E se soubermos articular o CICASC com os equipamentos já existentes ou em fase de finalização na nossa cidade (Teatro do Mauá, Memorial Unisc, Casa das Artes Regina Simonis, Estação Férrea) e tivermos a capacidade de criar eventos culturais significativos para a ocupação destes equipamentos, poderemos antecipar ainda mais os resultados culturais e econômicos para a cidade.
A outra possibilidade a ser considerada para a diversificação da economia e o desenvolvimento global de Santa Cruz do Sul que quero sugerir é a criação de um grande evento de periodicidade anual no campo da cultura que possa tornar Sana Cruz do Sul conhecida em âmbito nacional. Por exemplo, um Festival de Inverno de Cultura e Artes (FICASantaCruz), que tivesse a a duração de 10 dias (de uma sexta-feira até o domindo da semana seguinte) com a realização simultânea de dezenas de cursos, palestras, painéis, oficinas, mostras, intervenções urbanas em diversas áreas, linguagens e expressões artísticas, científicas e culturais. Serão mostras de fotografia, vídeo, videoarte, teatro, dança, música, cinema, escultura, pintura, desenho, cartun, poesia, gravura grafitti e oficinas de poesia, literatura, circo, webarte, televisão, rádio, fotografia, vídeo, videoarte, teatro, dança, música, cinema, escultura, pintura, desenho, cartun, gravura, grafitti. Os cursos, minicursos, conferências e palestras abrangerão temas como filosofia, filosofia da arte, sociologia da comunicação, estética, cultura de massas, cultura popular, história da arte, antropologia visual, sociofotografia, etc.
As oficinas e cursos podem ser organizados em nível básico e nível avançado. As atividades de nível avançado selecionarão participantes oriundos de diferentes áreas de atuação para compor equipes com múltiplas habilidades e grande diversidade de experiências e buscarão a utilização de diferentes linguagens e meios de expressão para produzir e apresentar os seus trabalhos durante a realização do evento. As atividade de nível básico serão abertas para os interessados, independente de experiência prévia. Para a realização das diferentes atividades pode-se utilizar, além dos equipamentos e espaços públicos (Estação Férrea, Parque da Oktoberfest, Auditório e salas do prédio da SMEC), toda a capacidade instalada do município contando com a parceria de entidades e instituições como Unisc, Mauá, São Luis, Dom Alberto, SESI, SESC, Casa das Artes, Espaço Camarim, Cine Santa Cruz etc. Se realizado na terceira semana de julho o FICA pode pegar o público universitário que estará em férias e poderá deslocar-se e passar de uma semana a dez dias em nossa cidade, movimentando hotéis, pensões, bares e restaurantes.
Evidentemente estas sugestões carecem de maiores análises de custo e de capacidade de investimento. Penso que seu maior mérito é colocar em pauta uma possibilidade de desenvolvimento que não vem sendo considerada nas diversas e diferenciadas manifestações sobre o desenvolvimento do município e a necessidade da diversificação da economia. Tendo a humildade de reconhecer o caráter preliminar e inconcluso de minhas propostas, tenho também a pretensão de sugerir que outros mais qualificados façam os necessários ajustes, correções e ampliações para que possamos continuar tendo a cultura na agenda do debate sobre o desenvolvimento de Santa Cruz do Sul.

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