Espaço para interação de cidadãos e cidadãs interessados no debate de políticas públicas para a cultura no município de Santa Cruz do Sul

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

cultura, classes, mercado

Na primeira parte a reunião do dia 21/01 foram colocadas duas questões que penso merecerem um aprofundamento: a) cultura não é mercado e b) numa sociedade de classes também a cultura assume um caráter de classe.
Estes pontos colocam em pauta o que compreendemos por cultura, e esta definição é importante quando percebemos a diversidade de participantes do fórum e vemos uma certa tensão entre uma visão que aponta a necessidade da criação de um mercado de trabalho da cultura que permita que artistas e técnicos possam viver de seu trabalho no campo cultural e uma visão que aponta para a necessidade de acolher na cultura as manifestações do modo de vida de grupos que não produzem arte ou cultura em termos profissionais. Enfim, uma tensão entre uma visão da cultura restrita à arte (que eu tenho chamado de cultura artística) e uma visão ampliada de cultura como o conjunto de expressões simbólicas de grupos étnicos e sociais. Penso que as duas visões não são excludentes e a diversidade do nosso fórum exige qu consigamos explicitar e desenvolver as duas concepções.

Cultura não é mercado
Embora tenhamos falado muito na necessidade de consolidar um mercado de trabalho na cultura e tenhamos concordado que é preciso dar condições de sobrevivência para os artistas e produtores culturais, penso que todos concordamos que se deixarmos a cultura se virar de acordo com as “leis do mercado”, tudo o que eremos é a chamada indústria cultural – produção industrializada de objetos culturais voltados para a troca no mercado, equiparando canções, filmes, novelas, livros e revistas com sabonetes, automóveis, iogurtes. Ou seja, se pensarmos a cultura como mercado, vamos ter apenas as produções de apelo comercial e os únicos produtores culturais que sobreviverão de seu trabalho em cultura serão aqueles ligados aos grandes empreendimentos, especialmente redes de televisão.
Então, efetivamente cultura não pode ser deixada à mercê do mercado. Se juntarmos a isso o fato de que não se faz cultura sem investimento, parece ficar claro que o poder público tem uma grande responsabilidade na criação de condições para a expressão da diversidade cultural e para o financiamento dos empreendimentos culturais locais e de pequeno porte. Ou seja, não faz sentido o Estado financiar um show do Roberto Carlos ou do Martinho da Vila – ou um filme do Daniel Filho ou do Arnaldo Jabor – mas faz todo o sentido (e é mesmo fundamental) que o Estado financie curtas metragens de diretores estreantes ou shows de música de artistas locais. Vale o mesmo raciocínio para o teatro, a dança, as artes plásticas etc. Em tempo: nada contra a arte do Roberto ou do Martinho. Uso-os apenas como exemplo de artistas já reconhecidos e estabelecidos, com apelo comwercial e que não precisam de financiamento do Estado.

Cultura e classes sociais
E com isso estamos na questão do caráter de classe da cultura. Existe um conjunto de manifestações culturais estabelecido e reconhecido, com mercado, com financiadores etc., e existem alguns conjuntos de manifestações culturais que ainda são vistas como não cultura, como coisa de baderneiros ou desocupados ou marginais. Por exemplo, o hip hop, o grafite, o teatro de rua. É interessante lembrar que o samba já foi perseguido no Brasil (e o maxixe, inclusive, era caso de polícia), que o roquenrol já perseguido, que o punk ainda é perseguido. Então podemos ver que também na cultura se estabelece uma linha divisória em torno das classes sociais. Não estou aqui a pregar luta de classes, mas chamo a atenção para a existência dessa luta. E principalmente quero destacar que a visão dominante de cultura tende a ser restritiva e a desqualificar como não cultura, não arte, não nada, as manifestações que não cabem dentro da televisão, dos teatrões e das salas de concerto. Um exemplo claro disso é que a sociedade e o Estado convivem pacificamente com a privatização do espaço público – lojas e bares que atravancam as calçadas, painéis publicitários que poluem a nossa visão – mas reage indignada se um grupo cultural pretende fechar uma rua ou ocupar uma praça para uma quermesse, uma apresentação de música ou teatro, uma oficina de grafite. Se alguém tentar grafitar um muro será acusado de vandalismo, se este mesmo alguém pintar uma mensagem comercial no mesmo muro, será um empreendedor.
Nesta linha vai o pensamento de Paulo Freire. Para ele cultura é atividade humana de trabalho que transforma, produzido por homens e mulheres que constituem diferentes movimentos e grupos culturais. Em seus livros “Ação Cultural para a Liberdade” e “Educação como Prática da Liberdade”, Paulo Freire vê “a cultura como aquisição sistemática da experiência humana”, como o “acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como resultado de seu trabalho. De seu esforço criador e recriador”. E tudo isso, diz ele, em um sentido de mão e contramão. Como afirma Carlos Rodrigues Brandão comentando estas obras no “Dicionário Paulo Freire”, “culturas são socialmente criadas, preservadas e transformadas em e como contextos políticos. Isto é, têm sempre a ver com a gestão do poder simbólico. Por isso seria possível falar em 'cultura dominante'; 'cultura dominada'; 'cultura alienada'; 'cultura popular'”. E Brandão continua, agora refletindo sobre a concepção de cultura popular de Paulo Freire: “Assim, em uma sociedade desigual, regida pela desigualdade em todos os setores da vida social, das relações de produção de bens materiais às relações simbólicas de criação e comunicação de significados e valores, as culturas das pessoas, grupos e classes subalternas são elas próprias regidas por uma autonomia muito restrita”.
Esta dominação de classe traduz-se, diz Paulo Freire, em uma “cultura do silêncio”, que é assim explicitada por Cecília Osowski no mesmo “Dicionário Paulo Freire”: “Para Paulo Freire a cultura do silêncio é produzida pela impossibilidade de homens e mulheres dizerem sua palavra, de manifestarem-se como sujeitos da práxis e cidadãos políticos, sem condições de interferirem na realidade que os cerca, geralmente opressora e/ou desvinculada da sua própria cultura. Ela [a cultura do silêncio] é o resultdo de ações político-culturais das classes dominantes, produzindo sujeitos que se encontram silenciados, impedidos de expressar seus pensamentos e afirmar suas verdades, enfim, negados em seu direito de agir e de serem autênticos.”

O que entendo por cultura
Cultura é um conceito difícil de definir com precisão, existindo mais de trezentas definições catalogadas nos manuais de antropologia cultural. Dentre estas, a noção mais aceita entre os antropólogos é a de modo de vida: a cultura corresponde ao modo de vida de um povo ou comunidade, constituindo e expressando o seu modo de sentir, pensar e agir. Esta noção – que é bastante adequada por ser sensível à diversidade cultural e à igualdade de direitos para as diferentes culturas - parte do princípio de que todos os povos ou grupos étnicos possuem cultura e nenhuma cultura é superior a outra.
Já desenvolvi isto em um artigo que postei lá nos primeiros dias de existência deste blog. Não vou reproduzir aqui aquela argumentação, mas retomo uma breve definição que coloquei como rodapé do blog:
A cultura, considerada como modo de vida, isto é, como o modo de sentir, pensar e agir de sociedades, povos ou nações, possui necessariamente três dimensões: a dimensão de produção simbólica (foco na valorização da diversidade, das expressões e dos valores culturais), a dimensão de direito da cidadania (foco nas ações de inclusão social por meio da cultura) e a dimensão econômica (foco na geração de empregos e renda, fortalecimento de cadeias produtivas e regulação).
Estas três dimensões do conceito de cultura precisam funcionar como tripé fundamental para o desenvolvimento das novas políticas culturais sob responsabilidade do poder público e devem estender-se de modo a embasar todas as políticas públicas para a cultura em todos os níveis de governo, tendo como parâmetros a promoção do acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural e o debate democrático dos critérios e objetivos da política cultural.

Penso que esta compreensão de cultura permite dar continuidade aos trabalhos do fórum e pode orientar suas discussões, pois se queremos democratizar a cultura é fundamental estabelecer um diálogo público sobre o fazer cultural, destacando a necessidade de um trabalho conjunto entre Estado e Sociedade para a construção de políticas públicas de cultura que contemplem a diversidade das expressões culturais no âmbito do município.
Esta postagem ficou enorme e por isso vou parar. Gostaria de comentários e outras opiniões.

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