Espaço para interação de cidadãos e cidadãs interessados no debate de políticas públicas para a cultura no município de Santa Cruz do Sul

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Democracia

Na última reunião do fórum foi colocado em questão o que entendemos por democratização e descentralização da cultura, como uma espécie de alerta para as dificuldades e armadilhas destes conceitos. Muito apropriadamente foi dito que se descentralizar é levar para a periferia aquilo que é feito e mostrado no centro, a descentralização não traz muita vantagem. Sim, talvez descentralizar seja justamente mostrar no centro aquilo que é produzido nas periferias. Independente disso, a descentralização da cultura, com toda a certeza, passa pela descentralização das condições de produção e fruição cultural (descentralizar recursos, equipamentos, professores, instrutores, eventos, atividdes). Isto tudo, certamente provocaria uma intensa discussão pública sobre objetivos e prioridades e poderia inclusive vir a ser criticado e combatido como perda de tempo, desperdício de recursos, populismo, etc.
Este tipo de debate é, ao mesmo tempo, a riqueza e a dificuldade da democracia. Sobre isso quero apresentar, nos parágrafos que se seguem, minha percepção das dificuldades e problemas da institucionalização de processos democráticos (seja na cultura, seja em qualquer dimensão da sociedade).
O que é democracia? Obviamente esta pergunta comporta um grande número de respostas. A questão é definir qual (ou quais) destas respostas é a mais adequada (aquela que descreve mais apropriadamente o fenômeno que queremos tratar).
O sociólogo alemão Max Weber, disse uma vez, meio como chiste, meio à sério, que a democracia é o sistema político no qual o povo elege um dirigente que, uma vez eleito, diz “Agora, bico cerrado e obedecei-me”. Esta definição, com a qual concordariam alegremente muitos dirigentes em diversos níveis, traz implícita uma impaciência frente às expressões públicas de dissentimento e divergência.
Certamente esta não é uma boa definição de um regime democrático justamente porque não leva em conta uma das características essenciais da democracia: sua qualidade autodesestabilizadora. Com isso quero destacar que nos sistemas plenamente democráticos tudo está em perpétuo movimento. Ou seja, os procedimentos democráticos promovem o debate e alimentam a insatisfação pública ante a situação existente e, muitas vezes, suscitam a irritação dos cidadãos e os levam a atuar diretamente. Numa democracia, dotados da liberdade de criticar e transformar a distribuição do poder estatal e das instituições civis, os cidadãos se encontram mergulhados em um estado de inquietação permanente; as pessoas sentem-se dominadas por uma sensação de incerteza acerca de quem governa e quem deve governar; as relações de poder existentes são consideradas contingentes, carentes de garantias transcendentais.
Uma primeira tentativa de definição da democracia, nesta linha de pensamento, precisa destacar que os regimes democráticos são os sistemas políticos mais exigentes, que prevêem inúmeros procedimentos para se chegar a decisões coletivas por meio do debate público, baseados na máxima participação possível das partes interessadas. Portanto, “una democracia es un sistema estructurado y abierto de instituciones que facilitan el control flexible del ejercicio del poder” (KEANE, John. “Naciones, nacionalismo y ciudadanos en Europa”. Revista Internacional de Ciencias Sociales, 140, julho 1994, p. 207).
As democracias nunca chegam a um ponto de equilíbrio homeostático. Ao contrário, são caracterizados pelas discrepâncias públicas acerca dos meios e dos fins, das incertezas, confusões e omissões dos problemas políticos e dos conflitos ocultos e abertos. Tudo isso torna-as vulneráveis e muitas vezes vítimas de tentativas de ganhar tempo, simplificar as coisas, pôr fim ao pluralismo e promover a unificação de tudo e de todos, instituir a ordem unida como a principal forma de comportar-se. Em virtude destes perigos, a democracia exige uma prática democrática militante para institucionalizar e defender a democracia por meio da prática de pequenos atos diários de resistência que ao mesmo tempo se nutrem do sentimento, por parte dos cidadãos, de compartilhar uma identidade, uma visão, um desejo, um experiência histórica, algumas tradições comuns.
Estes atos de resistência diária são tanto mais difíceis de realizar naqueles contextos carentes de alguns fatores constitutivos do que eu chamaria de as virtudes de uma cidadania democrática: prudência, sentido comum, capacidade de fazer juízos e defendê-los em público, coragem para criticar e aceitar críticas, capacidade de unir-se a outros em um movimento de dignidade e solidariedade para resistir ao medo.
Aliás, “librarse del miedo es siempre una condição básica de la democracia, y a ello suele contribuir el sentido, compartido por todos los ciudadanos, de pertenecer a una o más identidades éticas” (KEANE, John. “Naciones, nacionalismo y ciudadanos en Europa”. Revista Internacional de Ciencias Sociales, 140, julho 1994, p. 207).
Destaco a importância de resistir ao medo como um dos fatores fundamentais para a transformação democrática de regimes despóticos, nos quais o medo ao poder corrompe aos dominados e o medo de perder o poder corrompe aqueles que o detém.
E com isso chego a uma segunda tentativa de definição de democracia: “un mosaico político y social de múltiples estratos en el que se asigna a los decisores políticos, a nível local, regional, nacional y supranacional, la misión de servir a la res publica, mientras que, por su parte, los ciudadanos que viven inmersos en el engranaje de la sociedad civil están obligados a mantenerse vigilantes para evitar que los demás, y sus dirigentes, abusen de su poder y violen el espíritu del bien común.” (KEANE, John. “Naciones, nacionalismo y ciudadanos en Europa”. Revista Internacional de Ciencias Sociales, 140, julho 1994, p. 207).
Nesta definição aparecem como fundamentos da democracia o dever dos agentes políticos servirem à coisa pública e a o bem comum e a responsabilidade dos cidadãos de evitarem que os demais cidadãos e as lideranças políticas e sociais abusem do poder ou violem o pacto de busca coletiva do bem comum. É para poder assumir suas responsabilidades que os cidadãos precisam organizar-se em movimentos e/ou entidades que lhes permitam juntar forças na defesa da democracia. Defesa esta que é, verdadeiramente, parte do processo de construção cotidiana da democracia.
Acredito que é isto que estamos tentando fazer, nós que nos reunimos no fórum da cultura: construir a aprofundar a democracia no âmbito da produção e fruição cultural no nosso município. Esta não é uma tarefa fácil e exige empenho, motivação e organização. Na próxima postagem entrarei no tema da organização do fórum.

Nenhum comentário:

Postar um comentário